Wednesday, May 18, 2011

A Alimentação Vegetariana como novo paradigma ético, ecológico e alimentar - apresentação do Projecto "Segredos da Horta

A Alimentação Vegetariana como novo paradigma ético, ecológico e alimentar - apresentação do Projecto "Segredos da Horta

por Pedro Jorge Pereira

Provavelmente já todos ouvimos a expressão “Somos aquilo que comemos”. Sendo a alimentação de facto tão preponderante naquilo que somos e fazemos porque é que, tantas vezes, praticamos uma alimentação tão inconsciente e descuidada? Não acaba por ser inevitável o surgimento de tantos problemas de saúde associados ao nosso estilo de vida e em particular à nossa alimentação?

Pode-se também dizer que a nossa alimentação se artificializou, industrializou e tornou em larga medida negligente. Quantas vezes fazermos algum esforço para reflectir verdadeiramente sobre os nossos hábitos alimentares? Até que ponto nos preocupamos verdadeiramente com a qualidade e vitalidade da nossa alimentação? Ou com a forma como esta se reflecte, desde logo e antes de tudo o mais, na nossa própria saúde?

Muitas vezes só acabamos por desenvolver esse género de preocupações, se desenvolvemos, quando a isso somos forçados por circunstâncias adversas nomeadamente: distúrbios físicos e/ou mesmo psicológicos resultantes da nossa alimentação.

Para além de um padrão evidente de industrialização, de artificialização e de aumento exponencial do consumo de produtos animais, sobretudo carne, distúrbios alimentares como a obesidade, num período anterior sobretudo à II G.M., eram praticamente residuais ou inexistentes. Actualmente adquirem contornos quase epidémicos no dito “mundo desenvolvido”. Em alguns países cerca de metade, ou mais, da população evidencia excesso de peso. Às vezes em proporções verdadeiramente assustadoras.

Simultaneamente, e como consequência natural, o número de doenças cardiovasculares disparou também nos países desenvolvidos. Porventura a alimentação não será o único factor mas, associada por exemplo a um maior sedentarismo, é sem dúvida um dos principais, senão mesmo o principal, factor.

Por outro lado, se analisarmos a própria evolução do sector alimentar, podemos facilmente constatar um padrão de concentração da produção sob o controlo de grandes empresas agro-industriais. De uma forma geral essa concentração tem-se vindo a revelar nociva. Ao nível da produção, apesar de uma suposta maior oferta em termos de marcas e produtos (marcas, na realidade, na maior parte das vezes, detidas por um conjunto muito restrito de corporações) a realidade é que se tem vindo a assistir a uma gradual perda de diversidade e a uma aceleração dos processos de industrialização.

O próprio poder dessas corporações baseia-se em larga medida numa poderosa estrutura de propaganda e marketing que, obviamente, existe predominantemente para induzir os indivíduos ao consumo, se possível quase “patológico”, dos seus produtos. Com esse intuito essas corporações conseguem, vezes sem conta, atingir de facto os seus propósitos comerciais mas com um elevado impacto negativo ao nível da educação e consciência alimentar, assim como cívica, dos indivíduos. Ou seja, muitos dos seus produtos têm um impacto bem mais negativo do que positivo no regime alimentar dos cidadãos (por exemplo considerando que muitas utilizam vezes sem conta o açúcar como substância aditiva) mas essa não é de forma alguma a mensagem que é transmitida. Bem pelo contrário.

Um público particularmente vulnerável a todo esse bombardeamento comercial é o público infantil. As crianças são também, simultaneamente, um alvo particularmente “apetecível” pois têm uma capacidade de influenciar as escolhas e hábitos de consumo da família de uma forma inestimável. Basta pensarmos no caso das crianças que “arrastam” atrás de si toda a família para o “Macdonalds” em virtude de toda a sedução dos brindes do “Happy Meal” e das zonas de recreio para crianças.

Se reflectirmos bem sobre a questão é profundamente perturbador pensar que algo com uma importância tão primordial como a alimentação, que se reflecte de uma forma tão directa na saúde dos indivíduos e, por inerência, da sociedade, tenha vindo a tornar-se, nos últimos anos, numa área onde os interesses corporativos de poderosas multinacionais predominam vezes sem conta em detrimento de valores bem mais importantes e éticos.

Nesse sentido, e focando-nos mais no aspecto “ético”, não deixa de ser profundamente pouco ético, para não dizer algo mais grave, que essa mesma indústria agro-alimentar tenha vindo a revelar uma tremenda capacidade para recrutar uma parte inestimável da comunidade científica para o seu campo propagandístico. Na prática, o que isto significa é que muitas vezes certos produtos e marcas que são promovidos como tendo este ou aquele benefício ao nível do próprio bem-estar físico para o consumidor estão a vender uma mais valia falsa ou até, em muitos casos, falaciosa. Por vezes contribuem até para a adopção de estilos de vida e padrões alimentares profundamente errados e perniciosos.

A esse nível, estou em crer, e generalizando, que a evolução tem sido num sentido negativo. Algumas das tendências, parcialmente já mencionadas anteriormente, e que se podem classificar de evidentemente mais negativas são:

- O aumento exponencial do consumo de carne e de outros produtos animais (nomeadamente lácteos);

- O maior refinamento e processamento dos alimentos o que leva, obviamente, a uma elevada perda de nutrientes e de outras propriedades. Isto apesar de estes se apresentarem como, aparentemente, mais atractivos e saborosos;

- Deficiente ingestão de produtos/alimentos integrais;

- Ingestão insuficiente ou mesmo quase residual de produtos hortícolas e frutícolas “frescos”, derivado, por exemplo, de um aumento dos alimentos congelados ou repletos de conservantes e intensificadores de sabor artificiais;

- Globalização da produção alimentar privilegiando em larga medida os processos mais intensivos, industrializados mas também com um impacto ecológico mais pesado e destrutivo. Para além de todos os impactos ao nível da saúde humana que estão ainda e em larga medida por avaliar.

- Aumento do consumo e “vulgarização” do “fast-food”.

- Perda de vínculos sociais e em parte da importância da refeição como momento de confraternização familiar.

Haverá muitos outros padrões e tendências a observar. No entanto, podem mencionar-se apenas os anteriores como sendo alguns dos mais preponderantes e fundamentais.

Tendo as sociedades “ocidentais” desenvolvido este género de padrões a questão que urge suscitar é:

O que fazer para conseguirmos inverter todo este género de tendências e fenómenos em larga escala de deterioração dos padrões alimentares?

Uma crítica em relação à industrialização da própria alimentação não constitui, como é de alguma forma propalado pelos defensores da tecnocracia moderna, uma apologia de “retorno ao passado”. No entanto, a certos níveis, os padrões alimentares anteriores a todas estas vicissitudes eram de alguma forma mais saudáveis e equilibrados. É certo que em virtude das próprias circunstâncias económicas, por norma mais adversas, existiam problemas graves até de subnutrição, mas, aparte desse aspecto, a realidade é que muitos dos problemas de saúde actuais, muito deles intimamente associados aos padrões alimentares contemporâneos, eram então muito residuais ou praticamente inexistentes (se pensarmos por exemplo na obesidade).

Nesse sentido observarmos que a determinados níveis evoluímos para um patamar de deterioração dos padrões alimentares deveria servir para tentarmos recuperar alguns dos padrões e hábitos alimentares ancestrais que, a muitos níveis, se têm vindo a perder.

A emergência das refeições pré-preparadas, dos produtos congelados, dos alimentos carregados de produtos químicos conservantes (ou por exemplo intensificadores de sabor, com aromatizantes, etc.) veio trazer muito mais malefícios do que propriamente benefícios para as sociedades ocidentais, que, a muitos níveis, com o fenómeno da globalização, têm vindo a “exportar” os seus padrões de consumo e estilo de vida um pouco para todo o lado do globo.

Acima de tudo, e antes de tudo o mais, urge empreender um enorme esforço de reflexão pessoal e colectivo no sentido de podermos observar de forma crítica e consciente aqueles que são os nossos hábitos alimentares actuais.

A alguns níveis começam a surgir indicadores positivos de uma maior consciencialização, assim como esforços e movimentos empenhados na promoção de padrões alimentares mais saudáveis, equilibrados e também ecológicos. As versões mais recentes da própria pirâmide alimentar, por exemplo (com uma preponderância bem maior das frutas, legumes, oleaginosas e cereais integrais), denotam bem essas mudanças positivas.

A outros níveis a ferocidade de todos os recursos propagandísticos da industria agro-alimentar continua tão ou mais acentuada do que já vinha sendo habitual. E continua a proliferar a propaganda a muitos níveis irresponsável aos pseudo super produtos teoricamente capazes de suprir do ponto de vista nutricional o essencial das nossas necessidades alimentares.

Por outro lado, aquilo que é a nossa alimentação “moderna” mais não é, a certos níveis, do que um reflexo daquilo que é a agricultura actual. Uma agricultura de modelo predominantemente intensivo e, como tal, em larga medida tóxico-dependente. Ou seja, dependente de elevadas quantidades de produtos químicos de síntese, de fertilizantes petro-químicos e, naquilo que é um sinal evidente de uma preocupante perda de soberania alimentar, uma actividade controlada pelos gigantes agro-industriais cada vez mais, por exemplo, freneticamente empenhados em impor os alimentos OGM (Organismos Geneticamente Modificados) aos cidadãos consumidores que ainda ousam desconfiar destas generosas companhias que a mais não aspiram, dizem, do que contribuir para o bem da humanidade (lucros astronómicos, quem falou nisso?).

Chegamos por isso a este ponto paradoxal em que a agricultura (à imagem de muitas outras actividades humanas, mas ainda mais “paradoxal” no caso da agricultura dado que estamos a falar na produção dos nossos próprios alimentos) consome muitos mais recursos do que aquilo que realmente produz. Para além disso, e tão ou mais preocupante: aquilo que é produzido é-o, em larga medida, de forma completamente insustentável e com um impacto ecológico demasiadamente destruidor. Chegados a este ponto é inevitável reflectir sobre uma das principais dimensões dessa destruição quase implícita naquilo que são os modelos agrícolas industriais modernos: a Agro-Pecuária Industrial.

Por outras palavras, a indústria pecuária, a criação intensiva de animais para satisfazer o consumo de carne dos países ditos industrializados, é uma das actividades humanas com um impacto mais “pesado” a nível planetário.

Só para termos uma pequena ideia, considere-se alguns dados:

“Estima-se que a contribuição do gado para a contaminação da água supera em mais de dez vezes a dos humanos e mais de três a indústria”

“Cerca de metade da pesca mundial vai para alimentar gado, 91% do milho, 77% da farinha de soja, 64% da cevada, 68% da aveia e 99% das colheitas de sorgo” (1)

“São necessários oito vezes mais combustíveis fósseis para produzir proteína animal do que proteína vegetal e que a primeira é apenas 1,4 vezes mais nutritiva do que a segunda.” (2)

“Um quilograma de carne de vaca produz tanto dióxido carbono quanto uma viagem de 250km de carro.” (3)

Face à dimensão expressa por estes dados é impossível negar a estrita ligação que existe entre o aumento do consumo de carne e a aceleração da destruição ecológica a nível global, nomeadamente se nos estivermos a referir, por exemplo, à questão das alterações climáticas.

Dessa forma qualquer mudança de paradigma a nível da alimentação das sociedades ditas ocidentalizadas terá que passar, pelo menos, por uma redução bastante drástica e efectiva do consumo de proteína animal. Redução que, de resto, só iria trazer benefícios considerando as diversas dimensões e impactos negativos ao nível dos quais o consumo excessivo se repercute (saúde, ambiente, bem-estar animal, etc.)

A mudança não implica que todas as pessoas tenham que se tornar necessariamente vegetarianas. Haveria muito a ganhar com isso certamente, mas acima de tudo urge inverter a tendência que se tem vindo a verificar de um aumento da procura e consequentes impactos do consumo de carne.

Há algumas décadas atrás, mesmo sem ser necessariamente vegetariano, a realidade é que o padrão alimentar de uma grande parte das pessoas era caracterizado por um consumo de carne bastante inferior aos níveis actuais. Muitas famílias comiam carne cerca de uma vez por semana.

De qualquer das formas, e apesar de cada vez mais difundido, ainda existe um enorme desconhecimento em relação àquilo que é, ou pode ser, a alimentação vegetariana e algumas das suas principais características.

O principal objectivo do projecto “Segredos da Horta” consiste precisamente em divulgar e dar a conhecer um pouco mais o vegetarianismo nas suas diversas vertentes e dimensões.

Uma das metodologias preferenciais tem sido a organização e dinamização de oficinas práticas de alimentação vegetariana onde os indivíduos podem ficar a conhecer mais, e de uma forma muito concreta, sobre esta.

A principal filosofia é a de que o ser humano é constituído por uma dimensão biológica, psicológica e espiritual. A nutrição não é pois a mera satisfação de uma necessidade biológica elementar mas, muito mais do que isso, é um processo de transmissão energética e de profundo inter-relacionamento do ser vivo com o meio ambiente (ecológico e social) onde se insere. Logo, daí se depreende que uma alimentação que tem por base o sacrifício e sofrimento de milhares de animais não pode senão causar enormes distúrbios e problemas planetários, bem como ao nível da própria saúde de quem se alimenta principalmente de carne. O Vegetarianismo é pois, e cada vez mais, uma opção eticamente mais correcta (pela enorme redução da exploração e sofrimento causado às outras espécies animais) e, em geral, ecologicamente mais sustentável.

Por outro lado está longe de ser, como alguns a tentam rotular, uma moda urbana moderna. Na verdade, ao longo da história, e ao contrário do mito que vai prevalecendo de que o Homem é essencialmente omnívoro, diversas civilizações e algumas figuras particularmente proeminentes da história da humanidade praticavam e praticam, por diversas razões, uma alimentação essencialmente vegetariana (Leonardo da Vinci, Platão, Sócrates, Henry David Thoreau, Gandhi, entre outros). Além disso, como de certa forma já foi referido, ainda que vivendo numa sociedade onde o consumo de carne é comum e predominante, o vegetarianismo por motivos de ordem ética, ecológica, religiosa e espiritual encontra-se cada vez mais difundido, estando também implícito em novos paradigmas de aproximação da espécie humana à Natureza. Talvez também implícito em novos paradigmas de “regresso às raízes” e a um estilo de vida, particularmente ao nível dos padrões alimentares, mais simples e natural. Sem sombra de dúvida mais harmonioso e equilibrado.

Por todos esses motivos e mais alguns o projecto Segredos da Horta irá continuar a dar o seu modesto mas determinado contributo para que o nosso Planeta possa ser um lugar melhor para todos os seres viverem, começando nessa dimensão tão crucial que é a forma como nos alimentamos e olhamos para a alimentação.

Segredos da Horta – Alimentação Vegetariana Natural

Pedro Jorge Pereira

segredosdahorta@gmail.com

http://segredosdahorta.blogspot.com/

Referências:

(1) (dados do departamento de agricultura dos EUA)

(2) Cornell University Science News (1997) [Em linha]. Disponível em http://www.news.cornell.edu/releases/aug97/livestock.hrs.html [Consultado em 08/04/2011].

(3) Fanielli, Daniele, Newscientist (2007) [Em linha]. Disponível em http://www.newscientist.com/article/mg19526134.500 [Consultado em 08/04/2011].

(4) Kushi, Michio e Jack, Alex;A Humanidade numa encruzilhada”, Um Mundo Ético, Lisboa, 2002

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